Amanda Miranda | amanda.miranda@an.com.br

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Luana tem síndrome de Down e é uma das filhas de Carla Penteado - Jessé Giotti

A mesa de fórmica no centro da cozinha da casa da avó é um objeto que persegue as lembranças de Carla. O móvel não existe mais, mas aquelas seis cadeiras que cercavam o retângulo compuseram durante muito tempo o ideal que ela tem de família.

Nos sonhos de menina, cada um teria um assento reservado. O papai, a mamãe e as quatro filhas. Ela só não contava que não estaria em uma família padrão. E que os personagens - Marcelo, Marcela, Luana, Nadine e Rafaela - seriam, hoje, os protagonistas do seu conto de fadas.

Carla mora em um castelo, como ela mesma gosta de definir. Tem quatro princesas, suas filhas adotivas. Nadine, 18 anos, fruto de uma adoção tardia. Marcela, 8 anos, autista. Luana, 3 anos, portadora da síndrome de Down. Rafaela, 5 meses, vítima de hidrocefalia. Também tem um rei, "o melhor rei do mundo": Marcelo, parceiro de uma vida.

Ela só não tem uma história de vida convencional. Desafia as barreiras do preconceito nas escolhas que faz. Foge das regras e padrões de normalidade. Enfrenta quem precisar para que não risquem a sua história. Embrenha-se em batalhas que consomem horas do seu dia, anos de sua existência. 

— É diferente, não é nada comum, mas é a melhor família do mundo —, diz.
A infância dela também não foi comum. Quando criança, Carla conviveu com Taís, uma menina cega, amiga da escola e aliada nas brincadeiras. O colégio privilegiava o modelo de educação inclusiva e isso fez toda a diferença na forma como ela desenhou a sua compreensão de mundo. 

— Depois que mudei de escola, tive uma dificuldade imensa em entender por que as crianças viam tantas diferenças umas nas outras. Eu não consegui me adaptar àquilo. Para mim, todo mundo era igual —, lembra.

Já na adolescência, estudando apenas entre "iguais", entre pessoas aparentemente perfeitas, ela custou a se adequar. Quando completou 16 anos, entrou no voluntariado como um forma de voltar à época em que não enxergava diferenças. Depois, formou-se física e foi trabalhar na bolsa de valores, com um ritmo de vida alucinante, sem tempo para pensar na maternidade.

Na época, o que lhe preenchia o tempo era o trabalho com crianças com câncer e com menores em situação de risco. Depois de um período intenso e combativo, teve de abandonar os projetos em São Paulo, onde morava desde então. 

Só não contava que essa mudança repentina iria ser o ponto crucial da sua vida. Em uma passagem relâmpago por Aracaju (SE), para visitar a família do namorado, ela decidiu ficar. O motivo foi uma paixão à primeira vista. Não uma paixão comum. Era um amor de mãe.

O PRIMEIRO CHORO DE MARCELA


Ela não era uma boneca para não chorar. Tinha olhos, bocas e ouvidos perfeitos. Tinha uma fisionomia tranquila, pacata. Carla estranhou os comentários das funcionárias do abrigo sobre o comportamento estranho daquele bebê. 

— Essa daí nem adianta pegar, pois não sente nada —, disse a mulher. 

— Quem não sente é boneca —, disse Carla, baixinho.

Carla aninhou Marcela em seus braços e a embalou cantando "Carinhoso", de Pixinguinha. Devolveu a menina para o bercinho, apenas mais um dentre tantos outros que guardavam histórias de crianças abandonadas, em situação de abrigo. Imediatamente o bebê chorou. Aquela menina não era uma boneca. Era gente de verdade. 

— O abrigo veio abaixo. Todo mundo queria ver ela chorando. Ninguém acreditava —, recorda.

Foi uma identificação imediata entre mãe e filha. Ou entre almas gêmeas. Marcela tinha menos de dois meses de vida e um diagnóstico de paralisia cerebral. Carla tinha certeza de que não queria ser mãe naquele momento. Mas certezas existem para serem destruídas. 

— Naquele dia eu não dormi. Acordei com o olho inchado. Acordei e comecei a lutar por ela.

A batalha de Carla e de Marcelo pela adoção da menina durou cinco meses. O diagnóstico de autismo severo veio pouco tempo depois, junto com uma receita médica e uma frase dolorosa. 

— Mãe, se prepare porque em breve vocês terão que se separar. 

O doutor se referia ao tratamento da doença, que previa o isolamento e o convívio com pessoas que enfrentavam o mesmo problema. 

— Eu não acredito em remédio, nem no isolamento. Vou fazer diferente —, respondeu.

A partir daí, sites e grupos virtuais passaram a ser os grande aliados. Carla aprendeu tudo sobre autismo. Entendeu detalhes da doença e começou a lutar contra eles. A principal arma tinha três letras: ABA, sigla em inglês para o termo análise aplicada de comportamento, o caminho que escolheu para ver a filha crescer. 

— A Aba trabalha com o impossível, que é a possibilidade de ver a criança autista falando. Na época, o tratamento passava dos R$ 3 mil. Estava acima do que eu poderia gastar. Por isso decidi aprender.

Uma criança que segue o tratamento previsto pelo ABA é estimulada a ser independente tanto na comunicação, quanto em atividades corriqueiras, como a higiene pessoal. Junto com a cartilha que ajudou a traduzir, Carla investiu em sessões de fisioterapia e fonoaudiologia para a filha. 

Aos cinco anos ela falou pela primeira vez. Hoje, está na segunda série. Não sabe ler, mas acompanha como pode o ritmo dos colegas. Frequentou dezesseis escolas diferentes, a maioria delas despreparadas para o autismo. Na última, acertou.

Mesmo com os avanços, frutos do empenho e do amor da família, Carla sabe que Marcela será dependente dela para sempre. Além do autismo, tem paralisia cerebral. A mãe às vezes se sente cansada de tanto trabalho, mas não pensa em parar. Está preparada para destinar toda a sua vida a uma causa, a um grande amor. 

— Quando a adoção estava prestes a sair, eu sempre dizia que ia até o fim do mundo pela Marcela. E eu ainda vou. Sempre irei.

SEJA BEM-VINDA, LUANA

Carla sabia que a família ainda não estava completa quando viu uma luz despontar no centro do berçário de um abrigo de menores. Lá estava Luana. Ainda era pequenina e frágil. Tinha síndrome de Down e um histórico de sucessivas pneumonias. O reconhecimento também foi imediato. Aquela menina nascera para ser a sua filha. 

— Ela parecia uma estrela, brilhando no meio dos outros berços. Era o que eu precisava para pedir a guarda"

A luta por Luana foi incansável. Ela viu a menina definhar porque a burocracia não permitia que elas fossem uma da outra. Na terceira pneumonia seguida, o juiz finalmente liberou a guarda. Luana nunca mais adoeceu. Hoje está com três anos, prestes a dar os primeiros passos, que Carla não quer apressar. 

— Ela fica em pé, mas tem medo de andar. Eu sei que preciso respeitar.

Como a irmã, ela também passou por sessões de fisioterapia e fonoaudiologia. Ano que vem vai entrar na escola. Carla encara a síndrome com certa tranquilidade e pensa num futuro sem limitações para a sua estrela. Imagina a sua independência. Vibra com a energia e as brincadeiras que ela inventa. Não teme, apenas espera. 

— Perto do problema da Marcela, sei que o dela é mais fácil de administrar. Ela não vai mais depender de mim.

RAFAELA, O BEBÊ DE CASA

Quando chegou em Joinville, há cerca de quatro meses, Carla sabia que a família ainda não estava completa. Nadine, 18 anos, havia se unido à família alguns meses antes, a partir de um processo de adoção tardia, mas faltava alguém. 

Foi no Fórum levar a documentação para adotar a quarta menina e imediatamente descobriu a história de Rafaela, um bebê com hidrocefalia. Outro amor à primeira vista. 

— Todo mundo me dizia: vá na maternidade que tem um bebê esperando por você. E eu fui.

Rafa é a caçula da casa. Tem apenas cinco meses e passou os últimos dias no hospital, entre a UTI e o quarto. Carla e familiares se revezaram nos cuidados, mas o problema foi grave. Acharam que havia chances de perdê-la. 

— Foi uma válvula do cérebro. Estamos morrendo de saudade dela —, conta, apontando o carrinho vazio.

Ainda não se tem certeza sobre o quadro clínico da menina. Por enquanto, há apenas uma certeza: a surdez total. Não há como prever se ela terá dificuldades cognitivas ou sensoriais.

— Tem coisas que a gente não consegue prever no tempo certo. Mas eu também não saberia o que o futuro reservaria para ela se ela tivesse nascido sem problemas. Faz parte da vida da mãe esperar.

E O FIM DO CONTO DE FADAS?

A rainha da família fez escolhas racionais para construir o seu castelo. Foi a emoção quem fez o seu coração bater mais forte por Marcela, Luana e Rafaela. Mas foi a razão que lhe fez procurar crianças especiais para preencher os assentos da mesa da cozinha. 

— Uma criança normal seria criada para ser a cuidadora da criança especial. E não era isso que eu procurava.

Carla nunca se vitimou. Escolheu o caminho que quis e teve todo o apoio de que precisava para vencer suas batalhas. O marido, as irmãs, os avós, os empregados e os médicos que estiveram ao seu redor. Talvez por isso ela não canse de sorrir, mesmo quando diz coisas que poderiam parecer trágicas se não guardassem tanta esperança.

Hoje, além de administrar esse castelo, Carla se dedica a comunidades virtuais de adoção de crianças especiais. Sabe que, como ela, muitos têm coragem. Já conseguiu mediar mais de cinquenta casos, só com o seu exemplo. 

— Quando alguém me diz que quer, é porque consegue mesmo —, garante.

Ela não é modelo, mas foi capa de revistas e viu sua história na TV. Tem aquela paz digna de rainha e um rosto que não cansa de brilhar. Se ela se acha especial? Nem tanto. Mas tem quem ache. Por isso sua história já tem um fim definido: um final feliz, digno de contos de fadas.

AN.COM.BR



Fonte:
A Notícia (jornal de Joinville)